quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Após Primavera, países árabes terão dolorosa estabilização



Mesmo com queda de ditadores, especialistas acreditam que reconstrução dos estados passará pelo crivo de uma longa caminhada

Ao longo dos últimos meses, rebeldes líbios, egípcios e tunisianos derrubaram regimes ditatoriais que, há décadas, cerceavam o acesso à democracia, à liberdade e aos direitos humanos.
Após 24 anos, o primeiro-ministro tunisiano Zine Ben Ali deixou o poder em janeiro. O militar egípcio Hosni Mubarak, ao perder o apoio dos militares e sofrer as pressões de protestos na Praça Tahir, renuncia ao cargo que ocupava há mais de 30 anos. E, por fim, em agosto, o coronel líbio Muammar al-Gadaffi, no comando do país há mais de 40 anos, cede às pressões da guerra civil e deixa a capital Trípoli.
Contudo, mesmo em um cenário de seguidas vitórias da Primavera Árabe, é imenso o desgaste institucional e político dessas nações. Para especialistas, estabilização e reconstrução nacional são dilemas que estão longe de serem solucionados e que, assim, apontam no sentido de uma longa caminhada a ser percorrida.

Vazio político

Samy Adghirni, repórter do caderno Mundo do jornal Folha de S. Paulo, é especialista nos conflitos do mundo Árabe e já acompanhou as tensões políticas de países como Iraque, Irã, Iêmen e Egito.
Esteve recentemente na Líbia acompanhando o avanço de rebeldes rumo à Trípoli naquela que seria a manobra definitiva para a queda do regime de Gadaffi. Em meio a depoimentos que retratam o cenário agonizante, repleto de desrespeitos às normas do Direito Internacional Humanitário, ele se coloca de maneira pessimista perante o processo de recuperação do país.
“Será muito dolorosa [a estabilização] no caso da Líbia, que é um país sem instituições. A Líbia era o Gadaffi e ponto. Ele mandava e desmandava, fazendo da lei algo completamente relativo. Não tem sistema judiciário, não tem sindicato, não tem imprensa, não tem arte, não tem cultura, não tem nada”.
Sob esse parâmetro, Adghirni avalia que a reconstrução de países como a Tunísia e o Egito será muito mais simples do que na Líbia, justamente porque neles há “instituições sólidas”. “Alias”, ele completa, “foi uma instituição no Egito e na Tunísia que foi o fiel da balança: o exército. Os ditadores caíram a partir do momento em que o exército retirou seu apoio”.
A seu ver, instituições fortes seriam inclusive uma das razões pelas quais alguns regimes não cedem mesmo frente a levantes populares. “No caso da Síria, Bashar al-Assad não caí porque o exército continua ao lado dele. Claro, houve muita deserção, mas o exército ainda assim o apóia”.

Um Egito sem rio

Christian Lohbauer, membro do Grupo de Análises da Conjuntura Internacional da USP, o GACInt, considera a importância de se tomar as particularidades de cada caso e de não homogeneizar a Primavera Árabe.
Além de estruturas sólidas, Lohbauer acrescentaria ao caso tunisiano “uma modernidade cultural bem acentuada” que tem corroborado com “passos enormes” no sentido da estabilização.
Já no que diz respeito ao Egito, a situação é bem mais delicada. Christian fala de um país “de excluídos, inserido em um cenário de privilégios concedidos a uma minoria, e que tem como governo de transição democrática uma junta militar” – algo próximo do que Samy chama de estado de “convulsão”.
Quanto à Líbia, mais uma vez o que prevalece é seu vácuo institucional. Lohbauer reforça que “a Líbia já é uma referência de país dividido desde os tempos do Império Romano, há mais de dois mil anos atrás. Trata-se de um país desabitado. Um Egito sem rio”.
Ele ressalva, contudo, que o mundo moderno vive de maneira ágil. A Líbia possui boas reservas petrolíferas que não foram afetadas pelos conflitos e sua revolução nasce em Benghazi, com o povo – “ou seja, há espaço para se erguer a nação”. “Além do mais, no caso líbio”, ele conclui, “não há nenhum impedimento cultural como o que se percebe no Afeganistão, um país aonde ainda predominam as assembleias tribais”.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

PM paulista ainda é uma das mais letais do país



Academias adotaram formações humanistas, mas desrespeito a direitos humanos persiste

Mesmo com redução dos casos de resistência seguida de morte ou lesão corporal, para especialistas em direitos humanos e violência, a Polícia Militar de São Paulo permanece como uma das mais letais do país, atrás apenas da PM do Rio de Janeiro.
A comparação entre os dados de 2004 e 2011 divulgados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública aponta para uma redução próxima a 45% no número de casos de suspeitos que resistiram a abordagens de policiais e, em seguida, foram mortos. No tocante às chamadas “resistências seguidas de lesão corporal”, a redução beira os mesmos valores percentuais, indo de 361 casos, em 2004, para 153, até junho de 2011.
Na visão da Human Rights Watch, contudo, o volume de casos de execuções ainda permanece alarmante no estado de São Paulo. Em relatório publicado em dezembro de 2009, a ONG, que conduz atividades humanitárias em vários continentes do globo, revelou que a polícia paulista matou, em 2008, quase o mesmo número de suspeitos que a polícia americana.
O mesmo relatório também compara o número de prisões com o número de mortes provocadas por policiais. Enquanto que, nos EUA, para cada 40 mil prisões, há apenas uma vítima de policiais, em São Paulo esse valor cai para 348. No Rio de Janeiro, as cifras são ainda menores: para apenas 23 prisões, há uma nova morte com origem em ações policiais.

Raízes do dilema

Martim de Almeida Sampaio, advogado e coordenador da Comissão de Diretos Humanos da OAB de São Paulo, acredita que são as origens da Polícia Militar que explicam esse modelo de segurança pública. Para ele, “a reforma da antiga Polícia Civil, durante o Regime Militar, transformou aquela polícia mais voltada ao cidadão em uma polícia de reserva do exército brasileiro”.
Mais além, ele acrescenta, “a ideologia dominante daquele momento era a de um ‘inimigo interno’, o que cria um arcabouço para a perseguição do indivíduo e averiguação mediante prisão”. A isso se soma “uma cultura de tolerância por parte da população, que ainda acredita que bandido bom é bandido morto”.

Progresso

O advogado ressalva, contudo, que esse não é o pensamento oficial da Polícia Militar. Na sua visão, “a instituição tem trabalhado para reduzir esses números e implantou um currículo com disciplinas ligadas aos direitos humanos nas suas academias”.
André Vianna, coronel da reserva da PM, observa que, além do recrutamento de “aplicadores da lei” ocorrer mediante diversos exames psicotécnicos e intelectuais, “é cada vez maior o número de indivíduos com ensino superior interessados em ingressar na carreira policial”.
Para ele, que também é consultor de segurança pública do CICV, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, os problemas que ainda persistem na formação de soldados e oficiais estão vinculados, em parte, à “ênfase e ao glamour que determinados segmentos da mídia dão a abordagens pouco convencionais e inadequadas por parte da polícia”.

ROTA

O relatório da Human Rights Watch também averiguou o grau de letalidade das tropas de choque da PM paulista e, em particular, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – a ROTA.
No parecer da ONG, são inúmeros os casos de execuções encobertas por soldados da ROTA, que alegavam supostos tiroteios e deslocavam corpos de vítimas a hospitais, simulando “tentativa de resgate”. As autópsias revelaram, entretanto, que na maioria desses casos “não havia nas mãos das vítimas resíduo balístico algum, o que comprova que não foram elas que iniciaram os supostos tiroteios”.
Entre 2004 e 2008, mais de 300 pessoas teriam sido mortas em supostos tiroteios com a ROTA enquanto que, no mesmo período, apenas um soldado das tropas de choque foi vitimado.
Questionado sobre os números, André Vianna alegou que “sem sombra de dúvidas, em comparação com os anos de 1970 e 1980, [a rota] evoluiu anos-luz – apenas policiais com boa ficha e longo tempo de serviço a integram”. Ele ressalva, contudo, que “isso não a faz menos polêmica, afinal, o batalhão foi instrumentalizado em um momento em que tanto o secretário de segurança pública do estado quanto o comandante-geral da polícia pertenciam ao exército”.
Já Martim Sampaio não vê finalidade na manutenção da ROTA: “num estado democrático de direito nós precisamos de uma polícia cidadã. Parece-me que a ROTA, por todo o seu histórico e por suas ações atuais, não é essa polícia”. Em menção ao depoimento de Paulo Telhada, tenente-coronel do batalhão, à revista VEJASP, em agosto de 2010, ele acrescenta que não existe a necessidade de “uma polícia que pregue Deus no coração e arma na cinta”.