sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Antonio Graciliano Candido Ramos



Quando os organizadores do encontro, frente ao auditório lotado, pediram àqueles que se apertavam por entre os corredores, em frente à porta, ou nas laterais do tablado, para que abrissem, de alguma forma, passagem para o palestrante, logo supus que, como imaginara, se tratava de um senhor frágil e débil em sua idade.
O estereótipo do ser humano dependente de assistência aflorou sem que se fizesse minimamente perceptível. Em um instante desapercebido, me pego elucubrando um velinho que mal consegue andar, que traz consigo ao menos bengala e acompanhante, que, em suma, não se fazia em condições de estar ali e que, portanto, incrementava o sentimento de ansiedade inerente à toda a platéia.
Tudo se silencia. Os que estavam próximos à porta tornam o semblante. A platéia acompanha o movimento sincronicamente. Eu, que estou encolhido sob as cortinas do tablado, me estico na tentativa de acompanhar a movimentação.
É ele, Antonio Candido e seus 93 anos. Esperava aplausos com sua entrada. Silencio-me junto dos demais. Ninguém o acompanha, nem bengala, nem parente. Ele caminha sozinho, contrastando toda sua elegância com uma discrição particular. Todos ali já haviam ouvido falar em seu nome. Talvez o silêncio fosse resultado dessa materialização do que antes se fazia uma imagem abstrata por essência.
Ele sobe no tablado, mais uma vez, sem auxílio algum. É a poltrona do meio que lhe está reservada. Candidamente ele se acomoda. Vêm-se os traços de orgulho e alegria disfarçados na expressão da Profª Elizabeth Ramos, da UFBA. O Profº Erwin Gimenez, da USP, se apronta para as apresentações, por mais que, como era de consciência comum, não deixassem a posição de meras formalidades.
Com mais uma surpresa – a veemência, a profusão, a clareza das palavras e da discursividade do maior crítico literário brasileiro –, principiava a celebração dos 75 anos da publicação do volume Angústia, de Graciliano Ramos, promovido pela editora Record em parceria com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
De todos os conferencistas, ouviram-se interpretações teóricas, percepções pessoais, incorporações do romance de Graciliano. Candido as havia vivido. Soube de antemão, da própria boca do autor (na única ocasião em que travou contato pessoal com ele) da confecção desta que seria uma de suas obras mais atordoantes e vis, marcada pela condição sufocante e desgostosa de um solitário funcionário público.
E nos deixou claro que aquele não era “o seu predileto do Graciliano” – “Meu favorito sempre foi São Bernardo, não me lembro nem de quantas vezes já o li. Pelo menos umas vinte vezes!”.
A nós, que nos regozijávamos com a sinceridade e proximidade dele, que se fazia, até então, um ícone tão distante, trouxe o fato de que não ia às livrarias há mais de 30 anos e que, assim, colocava-se distante de tudo o que de novo havia-se publicado.
A recordação da cachorra Baleia, do ruivo Fabiano, da sonhadora Sinhá Vitória, que na circularidade de sua vida, jamais materializa o colchão de molas que possuía o seu Tomás da Bolandeira foi pontual.
E, como se não houvesse passado sequer um único minuto, deixou o tablado, sorrindo tal qual uma criança, aos aplausos, para que seus “colegas” (palavra que utiliza constantemente) prosseguissem com suas incumbências.
Candido talvez seja a pior pessoa para se ter ao lado na ocasião de uma palestra. A ansiedade que nos tomava, antes, para ouvi-lo e, depois, para trocar palavras e pedi-lo que assinasse nossos livros era tamanha que a fala dos demais conferencistas se fazia oca, de significante esvaziado de significado. A substância do encontro estava naquele lúcido senhor, sob o pairar da narrativa de Graciliano.
A ansiedade se esmaeceu tardiamente. Percebi, ingenuamente, que não fora o único a ter a idéia de trazer o velho companheiro das prateleiras – Introdução à literatura brasileira – para ser timbrado pelo grande mestre. Fui um dos primeiros a alcançá-lo. Ao professar-lhe meu nome, aumentei propositadamente o volume de minha voz no receio de que a idade lhe prevenisse de escutar-me. Grande engano, fruto do estereótipo que, embora não aparentasse, ainda florescia. Tanto me escutou quanto ainda me questionou sobre um velho dilema ortográfico:

- “'Fillipe' só com dois L's ou com PH também?”

Desejava avidamente que aquele contato não se encerrasse por ali. Eram muitos os anos que ouvira seu nome em comparação com o pequeno intervalo de tempo que o havia visto. Estendi-lhe a mão, como se esse fosse o único gesto possível naquele momento para que por mais alguns segundos conseguisse sua atenção. Foi já tomando o livro do próximo da fila que me reparou novamente e, com um sorriso plenamente inesperado, cumprimentou-me com uma força surpreendente, para a qual, novamente, aquele estereótipo não se fazia preparado.

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